Ruas completamente alagadas, residências invadidas pelas águas das chuvas e moradores ilhados. Há alguns anos, principalmente no período chuvoso, essa é a realidade enfrentada por centenas de moradores de loteamentos residenciais localizados no entorno do Trevo do Francês, em Marechal Deodoro.
Também há alguns anos, esses moradores vêm denunciando a precariedade do sistema de drenagem e saneamento da região, problema que se agravou com o que classificam de “boom imobiliário desordenado” na região.
Na mesma semana em que o Ministério Público Federal em Alagoas (MPF-AL) informou que, atendendo a uma Recomendação do órgão ministerial, a Prefeitura de Marechal Deodoro anulou a licença prévia para construção de um empreendimento imobiliário de luxo na Praia do Francês, o CadaMinuto teve acesso a um estudo técnico apontando impactos ambientais causados pela precariedade do sistema de drenagem no entorno do Francês.
O estudo técnico que corrobora os relatos de moradores foi realizado este ano pelo engenheiro civil José Vieira Passos Filho, especialista em drenagem urbana, e revela que a situação na localidade é similar à ocorrida no Rio Grande do Sul este ano, quando enchentes atingiram milhares de pessoas no estado.
O documento faz parte de denúncia protocolada agora em setembro no Ministério Público Estadual (MP-AL), pela Associação de Moradores dos Loteamentos e Ruas do Entorno do Trevo do Francês. A entidade acusa a Prefeitura Municipal de omissão em relação à infraestrutura de drenagem e saneamento de águas pluviais, atingindo diretamente – somente na região – cerca de 600 famílias, ou seja, mais de duas mil pessoas.
Calamidade pública
Frisando que a associação não possui vinculações políticas, Robson Miguel, presidente da entidade, contou à reportagem que ela foi criada por sugestão do próprio MP, para que as ações e demandas apresentadas tivessem maior respaldo jurídico: “Estamos em um período eleitoral, por isso é importante deixar claro que a associação nunca serviu, nem servirá como comitê. O que está acontecendo em Marechal Deodoro se trata de calamidade pública e não de política”.
Segundo o presidente, a associação foi criada em agosto de 2023, depois de “a prefeitura ter batido a porta na minha cara e na cara de, pelo menos 600 famílias”, mas, mesmo após a realização de audiência pública no ano passado, com a presença de membros dos poderes Executivo e Legislativo e do Ministério Público, o Município não apresentou soluções para os problemas.
Este ano, a entidade contratou, por conta própria, o engenheiro civil José Vieira Passos Filho, para elaboração do estudo detalhado sobre a situação da região e, com o resultado em mãos, protocolou a denúncia no MP.
“O estudo aponta que com a substituição, por construções, dos espaços antes ocupados predominantemente por áreas verdes, deixaram de existir os espaços que absorviam as águas das chuvas, fazendo com que elas passassem a escoar sem destino certo, provocando inundações em vários imóveis, prejuízos causados pela falta do planejamento necessário para o recebimento da estrutura que está sendo edificada no Município”, explicou Robson.
Ele prosseguiu contando que, nas chuvas de 2023, por exemplo, várias pessoas ficaram ilhadas nos loteamentos e ruas em torno do Trevo do Francês: “Houve casos de idosos que passaram uma semana sem poder sair de suas casas, por conta da água e, em algumas ruas, não entravam ambulâncias, nem ônibus escolar. Também há o caso de duas idosas que perderam suas casas, só sobrando os terrenos”.
“Será um caos”
O CadaMinuto conversou também com o engenheiro José Passos, autor do estudo técnico, e ele frisou que o Município precisa fazer, com urgência, um Plano Diretor de Drenagem.
Lembrando que a Lagoa Manguaba e está assoreando e seu nível subindo, o especialista explicou: “Quem provocou a tragédia no Rio Grande do Sul foi a água da chuva, cuja quantidade que entrou na lagoa foi bem maior do que a que escoou para o mar. Então pode ocorrer algo similar em Marechal se o volume de água que cair lá for bem maior que o que pode escoar para a Lagoa Manguaba”.
O especialista avalia que os novos empreendimentos estão sendo projetados com soluções localizadas, mas é preciso soluções ‘macro’. “Foram feitos espécies de tanques em alguns condomínios que funcionam como lagoas artificiais ou lagoas de acumulação que, agora, estão virando criadouros de mosquitos e, hidraulicamente, não funcionam”, afirmou, acrescentando que, no futuro, devido à ausência da drenagem, algumas áreas hoje habitadas podem se tornar inabitáveis.
“Será um caos se não forem tomadas providências e o problema se repete em várias áreas do município. É necessário que seja feito com urgência um planejamento para região, para nortear as soluções, criar canais artificiais para escoar a água para a lagoa. Para dar condições a Marechal de acompanhar o desenvolvimento urbano é preciso fazer esse grande projeto. Antes da expansão é preciso esse amplo trabalho de esgotamento sanitário e macrodrenagem”, finalizou Passos.
Além da elaboração do Plano Diretor de Drenagem, levando em consideração, entre outros fatores, a atual cota de inundação no nível da lagoa, o estudo realizado pelo especialista recomendou também maior cautela na ocupação dos espaços, principalmente nas grandes áreas que estão sendo loteadas, sem planejamento de macrodrenagem; e que sejam evitadas construções sob o precário sistema de drenagem atual.
Transtornos e prejuízos
Há pelo menos quatro anos, o sonho de morar em um paraíso, nem tão perto e nem tão distante da capital, se transformou em dor de cabeça para a jornalista Priscylla Régia, moradora de um dos loteamentos localizados no entorno do Trevo do Francês, em Marechal Deodoro.
Ao CadaMinuto, ela contou que desde meados de 2020, quando a Prefeitura Municipal permitiu o “boom imobiliário” na região, sem a infraestrutura de macrodrenagem e saneamento de águas pluviais necessária, centenas de moradores da região vêm sofrendo com o alagamento das ruas no período chuvoso.
“Todos os anos passamos pelos mesmos problemas que, com os novos empreendimentos que surgiram e continuam surgindo, vêm se agravando. No período chuvoso, especialmente no inverno, as ruas alagam e a água entra em algumas residências mais baixas. Com a construção dos novos condomínios, a situação só piora, porque a água não escoa e fica presa nas ruas”, relatou Priscylla.
A jornalista afirmou que vários vizinhos acumulam prejuízos sequenciados porque tiveram e continuam tendo suas casas invadidas pelas águas. Ela mesma já perdeu as contas das vezes em que ficou “ilhada” com a família dentro de casa, devido ao alagamento da rua.
“Já chegamos a ouvir que nós escolhemos comprar um terreno no brejo e, por isso, não podemos reclamar… Já tive que sair de casa em uma motocicleta, com três pessoas e um animal, porque nem caminhonete entrava na rua”, desabafou, acrescentando que, durante um período, as aulas chegaram a ser suspensas na escola pública da região, pela impossibilidade do acesso.
“Asfaltaram a rua da escola e agora estão asfaltando a nossa, mas não irá adiantar, porque não existe drenagem. Será só um paliativo e continuaremos esperando que seja feito algo para realmente solucionar os problemas que têm causado tantos transtornos, há tanto tempo e para tantas pessoas”, concluiu Priscylla.
O CadaMinuto procurou a Prefeitura de Marechal Deodoro, mas até o fechamento da matéria, o Município não se manifestou sobre o assunto.
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